quarta-feira, 3 de maio de 2017

A morfologia dos contos de fadas: um método de leitura literária


                    * Wellinghton Santos
                        5ª Edição - Sergipe

                 Introdução

A necessidade de introduzirmos as novas tecnologias digitais da informação e comunicação é tema recorrente nas mesas de discussão sobre ensino e aprendizagem, educação e formação de professores. Não seria diferente no ensino de literatura. Mas como usá-las de modo que o aluno possa ter uma aprendizagem significativa? Como essas tecnologias podem auxiliar eficazmente o ensino? Precisamos repensar o ensino de língua materna sob a luz da multimodalidade, do multiletramento, e com um olhar especial para a contribuição secular dos contos de fadas, tendo como foco a formação de alunos leitores e produtores de texto. Vejamos o que diz Xavier (2013) acerca disso:

(...) estamos vivendo em um momento novo no que se refere ao uso das novas tecnologias na educação. O período de estranhamento com a possível “invasão” das engenhocas tecnológicas digitais nas salas de aulas parece já ter sido superado. Não existem mais tantos questionamentos como existiam cinco anos atrás. Por conseguinte, vem diminuindo a resistência por parte de todos os atores envolvidos no sistema educacional, (...), passando, inclusive, pela mídia que tem ajudado a convencer pais de alunos e a opinião pública em geral a conceber as tecnologias como aliadas à aprendizagem. (2013, p. 02)

Dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) em 2012 confirmam que os estudantes brasileiros pioraram em relação a 2009, com referência à média de proficiência de leitura na Prova Brasil do ensino fundamental das escolas públicas. Ficaram aquém do nível de aprendizado considerado adequado. Isso significa que nossas escolas precisam formar alunos mais leitores, jovens críticos e produtores de textos.
A formação de leitores proficientes é um dos principais objetivos do ensino de língua portuguesa. A publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1998, pôs a noção de gêneros (textuais ou discursivos... não vamos entrar aqui nesse mérito, pois ambas as teorias possuem suas congruências e incongruências) para as mesas de discussão sobre o ensino de língua no Brasil: [...] todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das interações comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, os quais geram usos sociais que os determinam. (Brasil, 1998, p. 21).
Nosso objetivo é, pois, contribuir para que os alunos possam apreender conceitos, práticas e habilidades significativas no que concerne ao uso da língua materna em diferentes situações de comunicação. Ao utilizarmos estratégias de leitura comparada entre contos clássicos e suas adaptações cinematográficas, nossa proposta metodológica objetiva extrair a riqueza da tradição oral, com todo seu tom formador, aliando-a à intensidade semiótica e a forte presença junto ao jovem contemporâneo dessa poderosa linguagem: a audiovisual. Além disso, a presença do tradicional desenho ou pintura reforça a riqueza do multiletramento e culmina com a possibilidade da autoria, momento em que o aluno é criador, tem voz (literalmente!).
O leitor proficiente que buscamos deve ser possuidor de uma competência comunicativa que incorpore: conhecimento linguístico, percepção da intenção do interlocutor e conhecimento pragmático. Deve, portanto, criar sentidos e processar informações, construir textos verbais orais e escritos e interagir verbalmente com seus pares, observando o texto numa situação real de comunicação.
A sociedade contemporânea — e por consequência a escola — requer não mais apenas o letramento, mas o multiletramento, pela própria diversidade de textos que circulam e as diferentes linguagens que os constituem. De acordo com Rojo (2012), há algumas características importantes que definem os multiletramentos:

* Eles são interativos; mais que isso, colaborativos;
* Eles fraturam e transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de propriedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos [verbais ou não]);
* Eles são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas).   (2012, p. 23)

Ainda segundo Rojo, a mídia digital, por sua própria constituição e funcionamento, é interativa e depende de nossas ações como usuários (e não receptores ou espectadores). Nessa vertente, nossa proposta contempla um meio digital de propiciar, através dessas características, o estudo significativo da estrutura e contextualização dos contos clássicos. Isso aflora mais fortemente no momento final, na recriação do conto, onde o aluno interage com a história, após compreendê-la e confrontar sua experiência discursiva com o mundo imaginário, fantástico do conto tradicional e com o mundo imagético das telas do cinema. “Sem nossas ações, previstas, mas com alto nível de abertura de previsões, a interface e as ferramentas não funcionam.” (Rojo, 2012, p. 23-24).
Também é importante na nossa proposta a exploração das estruturas textuais. Segundo Geraldi, no 6º ano do ensino fundamental, com referência a problemas de estrutura textual, destacam-se:

* A narração contém respostas às questões: quem? o quê? quando? onde? como? por quê?
* A sequenciação do acontecimento corresponde à história narrada?
* O que está faltando é importante? torna o texto (história) viável?
(GERALDI, 2012, p. 75)

Todos esses questionamentos são relevantes na análise estrutural. Essas inferências são o prelúdio de uma análise mais aprofundada, que leva em conta como o aluno deve compreender a sequência narrativa, quais são os elementos que a compõem. Além disso, perceber a importância dos valores humanos advindos do enredo, que são a essência dos contos, sobretudo os de tradição oral.
Tratando disso — valores humanos— o conto clássico, com seu caráter lúdico, traz conceitos de humanidade, solidariedade, sabedoria, amizade, lealdade, obediência, gentileza, dentre outros, de forma tão sutil e inteligente, que é impossível deixar de explorá-lo. Este é um dos motivos pelo qual foi escolhido como gênero corpus do nosso trabalho: a interação social promovida e o debate ético-sociológico que provém de sua análise. Mas o conto traz em si também valores negativos. Afinal, o bem e o mal compõem tanto nosso imaginário quanto nossa realidade. Somos todos constituídos de ambos os lados. São duas faces nossas que se revezam no convívio social. O que é importante analisar — e a estrutura dos contos maravilhosos nos permite ver isso — são as consequências de nossos atos. Se boas ou ruins. E para quem.
Gênero é um conceito que vem da abordagem discursiva. Nós, professores, não podemos perder essa gênese de vista. Apesar de os artigos e manuais didáticos frisarem o juízo bakhtiniano de que gênero é um “tipo relativamente estável de enunciado”, (...) o conceito atravessa qualquer tentativa sistematizante em direção ao pressuposto sociológico: gênero é um instrumento de interação social.  (WACHOWICZ, 2012, p. 26)
Ampliando esse conceito de gênero, no âmbito da multimodalidade, Oliveira (2013) cita Kress e Van Leewen (2006):

(...) a multimodalidade é uma característica de todos os gêneros textuais, já que congregam, no mínimo, dois modos de representação, como imagens e palavras e palavras e tipografias. Dessa forma, o empoderamento semiótico depende da compreensão das diferentes semioses presentes em cada gênero. (OLIVEIRA, 2013)

Espera-se, com nossa proposta multimodal de leitura e produção, que alunos e professores tenham um subsídio que aperfeiçoe e amplie os níveis de recepção textual no segundo ciclo do ensino fundamental, uma etapa da escolarização muito carente no quesito leitura literária. Assim, no que concerne às atividades de compreensão, devemos partir, segundo Koch (2008), dos sentidos explícitos, cuja transmissão está como objeto do discurso; chegando aos implícitos, objetos de inferências acerca do texto. Ela classifica os implícitos em dois tipos: (...) implícito “absoluto” — aquilo que se introduz por si mesmo no discurso e que o locutor diz sem que o queira e mesmo sem que o saiba — e um implícito “relativo”, interno àquilo que o locutor “quer dizer”. (KOCH, 2008, p. 23)
Dialogando com os preceitos de Koch, nossa abordagem também considera dois pontos, de acordo com o que propõe Kleiman & Sepulveda (2014, p. 17): dialogismo e situação de comunicação, pela proposta de aulas instigantes, com a compreensão ativa da fala do outro e a orientação dos enunciados considerando as possíveis (e as reais) respostas dos alunos, essenciais para a interação. Espera-se chegar, com isso, a dois pontos-chave: intenções e atitudes perante o enunciado.
Além disso, nossa contribuição para professores e alunos está pautada em alguns objetivos de língua portuguesa para o segundo ciclo do ensino fundamental, conforme os PCNs:
* Compreender o sentido nas mensagens orais e escritas de que é destinatário direto ou indireto, desenvolvendo sensibilidade para reconhecer a intencionalidade implícita e conteúdos discriminatórios ou persuasivos (...);
* Ler autonomamente diferentes textos dos gêneros previstos para o ciclo, sabendo identificar aqueles que respondem às suas necessidades imediatas e selecionar estratégias adequadas para abordá-los;
* Utilizar a linguagem para expressar sentimentos, experiências e ideias, acolhendo, interpretando e considerando os das outras pessoas e respeitando os diferentes modos de falar.   (Brasil, 2000, p. 124)

Considerando tudo que aqui vimos, pretendemos, a partir da aplicação de nossa proposta metodológica, chegar mais próximos do que preconizam os PCNs. Teremos, assim, uma meta alcançada: auxiliar na melhoria do ensino-aprendizagem de língua portuguesa, através duma leitura literária proficiente e ampliadora do nível cultural de nossos adolescentes, em quaisquer dos aspectos ora expostos neste trabalho.

Conto de fadas

O conto de fadas é a cartilha onde a criança aprende a ler sua mente na linguagem das imagens, a única linguagem que permite a compreensão antes de conseguirmos a maturidade intelectual. A criança precisa ser exposta a essa linguagem e deve aprender a prestar atenção a ela, se deseja chegar a dominar sua alma.    
Bruno Bettelheim

Após essa epígrafe, com uma belíssima definição do conto de fadas, porém antes de falarmos propriamente dele, o primeiro aspecto a ser refletido é: qual o papel da literatura nas aulas de português do ensino fundamental? É inegável a necessidade de uso dos mais variados gêneros, explorando suas estruturas e funcionalidades. É muito bem-vindo o texto jornalístico, o texto publicitário, etc. no âmbito da leitura escolar. Mas essa multiplicidade (inclusive constante nos livros didáticos) ofusca o papel humanizador do texto literário. Devemos, então, traçar metas e criar mecanismos que induzam o professor — e por extensão o aluno — a uma leitura melhor articulada da literatura. Vejamos o que diz Cruz (2012) sobre o papel da escola acerca do texto literário:

A escolarização do texto literário é uma realidade da qual não podemos fugir. Embora alguns estudiosos afirmem que o texto literário ao ser escolarizado perde sua essência primaz, que é a fruição, vale a pena dizer que muitos são os alunos que têm a escola como referência para o contato com a leitura literária, visto que a escola é o único lugar em que a dinâmica de leitura literária se fazia presente. Contudo, a despeito da polêmica instaurada sobre escolarizar ou não escolarizar o texto literário, o que deve ser modificado é a abordagem didática que se imprime aos textos trabalhados no âmbito escolar. (2012, p. 157)

Cruz (2012) ainda apresenta três competências comunicativas que devem ser entendidas e colocadas em exercício pelo leitor na escola. Nosso propósito é criar uma dinâmica que aflore e organize os sentidos do leitor para o desenvolvimento destas competências:

* Introspecção – o leitor, ao tomar posse do texto literário, absorve o contexto escrito, cria empatia e se enxerga nele;
* Imagem visiva – a absorção do contexto literário leva o leitor a reconstruí-lo imageticamente conforme os seus códigos culturais e todo acervo de leituras anteriormente adquirido;
* Interlocução – se configura numa ação que se manifesta no instante em que o leitor estabelece, no âmbito do texto, uma interação crítica e, de ponto, atua com o autor e o contexto ficcional; o que chamamos de processo triádico, isto é, há uma interlocução entre a tríade textual: autor/leitor/contexto ficcional. (CRUZ, 2012, p. 164-165)

Fica claro que, no processo de leitura do texto literário, intertextualizada com a linguagem audiovisual (e outros gêneros), fazemos uso da nossa visão semântica, pragmática, semiótica e psicanalítica, vinculando a noção de sentido a outra tríade: compreensão/interpretação/nova compreensão (Cruz, 2012).
O gênero conto de fadas possui quatro especificidades importantes para este trabalho: está presente na maioria das listas de leitura no ensino fundamental, especialmente, no primeiro ciclo (o que não impede de ser usado também no segundo); sua influência é inegável na formação de crianças e adolescentes do mundo inteiro, há séculos; possui tradição oral, o que possibilita várias releituras; e possui hoje inúmeras adaptações cinematográficas, nos mais variados gêneros de filmes (alguns possuem mais de uma adaptação).
Segundo Silva (2006), Bruno Bettelheim, em sua obra A psicanálise dos contos de fadas, ressalta o valor terapêutico dos contos de fadas, por levarem às crianças esperança e consolo diante da realidade e da ansiedade que as cercam. Quando lemos ou ouvimos uma história, nossa mente transforma inconscientemente a narrativa verbal em imagens do texto que se misturam com nossa memória pessoal. Essa interação faz-nos “ver mentalmente” a narrativa. Quando essa mesma história é adaptada ao cinema, entramos em contato com as leituras do roteirista e do produtor, que trazem diferenças em relação ao original. Isso pode ou não coincidir com nossas expectativas em relação ao filme. Daí serem muito comuns opiniões do tipo “O livro é melhor que o filme”. 
A autoria de muitos contos de fadas é atribuída aos irmãos alemães Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859). Os irmãos Grimm dedicaram suas vidas à criação de um dicionário filológico da língua alemã, à elaboração de livros sobre gramática e história da língua alemã, à reunião de mitos, lendas, baladas e, é claro, contos de fadas. Os contos foram sendo coletados, revisados e divulgados ao longo de décadas, desde 1812, até a edição definitiva, em 1857, última em vida dos irmãos. Na coleta de contos populares, reuniram narrativas da oralidade popular. Eles passaram a buscar fontes orais e, para isso, recorreram a amigos e conhecidos. Os Grimm consideravam que é possível depreender de tais similaridades uma origem compartilhada, ou a existência, num passado remoto, de uma narrativa primordial que teria se modificado ao longo das gerações de contadores, dando origem a um múltiplo de narrativas no presente. O conto de fadas popular é tratado como uma matriz ou fonte de inspiração para a livre criação ou invenção de histórias. Assim, quando um conto lhes chegava narrado por vários contadores, eles selecionavam a versão mais próxima da forma primitiva ou original. Outras vezes mesclavam partes de uma versão com outras, a fim de alcançar o mesmo objetivo. Eles não tinham em vista a reprodução dos contos na forma exata que os tinham ouvido, mas a conservação de um modelo ideal, em que estaria espelhada a ascendência comum das múltiplas formas da narrativa popular oral: contos de fadas, mitos, fábulas, lendas, sagas, etc.
Tratando especificamente do trabalho a ser efetuado na nossa oficina, saliento que é necessário ter ciência da estrutura dos contos de fadas, seu corpus. O russo Vladimir Propp é considerado o pioneiro do folclorismo estrutural russo, criando o modelo da sintagmática do conto de fadas na forma da sucessão linear das funções e dos personagens.   Em sua obra Morfologia do conto maravilhoso (1928), pesquisa a forma específica do conto de fadas enquanto gênero, para encontrar, consequentemente, uma explicação estrutural para a sua uniformidade. Definindo esse tipo de texto, não acerca dos temas, mas à composição narrativa, Propp (2006) desmembrou o corpus do conto de fadas em trinta e uma funções (ações) a serem realizadas: afastamento, proibição, transgressão da proibição, interrogatórios, informação sobre o herói, embuste, cumplicidade, dano, carência, mediação, início da reação, partida, primeira função do doador, reação do herói, recepção do objeto mágico, deslocamento no espaço, combate, marca do herói, vitória, reparação do dano ou carência, regresso do herói, perseguição, salvamento, chegada incógnito, falsa pretensão, tarefa difícil, tarefa cumprida, reconhecimento, desmascaramento, transfiguração, castigo e casamento. Essas funções podem ser agrupadas em sete esferas de ação, agrupadas por personagens: o agressor ou antagonista (o que faz mal); o doador (o que dá o objeto mágico ao herói); o auxiliar (que ajuda o herói no seu percurso); a princesa e o pai; o mandador; o herói e o falso herói.
Devemos considerar também dois aspectos. Primeiro: essas etapas ou funções definidas por Propp não necessariamente serão encontradas em todos os contos de fadas, sobretudo nas adaptações contemporâneas e mais ainda nas audiovisuais; o outro aspecto é que esses sintagmas narrativos que ele analisou e catalogou em diversos contos maravilhosos não está presente em toda a ficção do nosso tempo, exceto naquelas em que há relatos fantásticos. Em nossa oficina, essas etapas e as funções dos personagens devem ser identificadas no contexto, para que o aluno absorva a estrutura narrativa dos contos de fadas, percebam a importância dos papéis de cada personagem e possam, em suas adaptações, “brincar” com esse corpus, alterando-o conforme suas experiências sócio-discursivas e sua criatividade, já devidamente instigada através da adaptação audiovisual.

Leitura literária e multiletramento

Não lemos apenas letras e livros. A leitura é a uma ação humana muito mais ampla. Lemos a todo instante. Lemos propagandas, filmes, músicas, expressões faciais, sinais, símbolos, desenhos, sons, cores, pessoas... ler é um ato de cidadania.  Mesmo quando lemos um texto escrito, temos já a presença da multimodalidade: temos sons, sinais, imagens. Por essência, qualquer texto já é multimodal.
Mas o que é a leitura? Conforme Silva (2009, p. 23-25), existem três formas básicas de leitura: a leitura mecânica, que é a habilidade de decodificar códigos e sinais; a leitura de mundo, predefinida por Paulo Freire, que consiste num processo contínuo até nossa campa; por fim, a leitura crítica, que nos possibilita comparar com leituras anteriores, avaliar nossa postura ante o mundo, questionar, concluir, descobrir intenções.
Ao discorrer sobre formação do leitor, Silva (2009) ainda afirma que podem ser reconhecidos seis tipos de leitor: pré-leitor (apenas ouve a narrativa, guiado pela sequência de imagens); leitor iniciante (lê textos breves e fáceis); leitor em processo (lê com dificuldades em vocabulário ou uso da linguagem); leitor competente (lê textos mais complexos) e o leitor crítico (lê com autonomia qualquer texto e estabelece elos com a realidade). Inegavelmente, a família tem papel essencial na formação do leitor, através da sedução para a leitura, do exemplo, da orientação. Como na prática isso ocorre muito pouco, resta à escola fazer esse papel isoladamente. É de conhecimento de muitos essa disparidade em termos de leitura. Nossa aprendizagem consiste em administrar nossas experiências discursivas e culturais com o objetivo de resolver problemas em nossa vida social. Aprendizagem da leitura no sentido amplo (letramento) é usar esse arcabouço de vivências para interagir com o meio em que vivemos, fazendo-se parte ativa dele.
Se esses entraves em termos gerais de leitura já nos tiram o sono, o que dizer da leitura nas aulas de literatura? Qual o papel dela no ensino fundamental? Sabemos o fosso que há entre ler, inventar oralmente e escrever. Embora sejam interligadas, são habilidades distintas. É preciso, pois, instigar na escola a competência da recepção e da produção, considerando a força expressiva da literatura, assim como nossa própria força de expressão. Língua e literatura são irmãs. Nesse contexto, Colomer (2007) afirma que

A leitura literária pode expandir o seu lugar na escola através de múltiplas atividades, que permitam sua integração e conferência com outros tipos de aprendizados. Os mais imediatos, é claro, são os aprendizados linguísticos. Por um lado, o trabalho linguístico e literário conjunto permite apreciar as possibilidades da linguagem naqueles textos sociais que o propõem deliberadamente, como é o caso da literatura. Por outro, a inter-relação se produz através de formas mais indiretas, já que o contato com a literatura leva as crianças a interiorizar os modelos do discurso, as palavras ou as formas sintáticas presentes nos textos que leem. (2007, p. 159)

Assim sendo, o contato com a literatura serve para auxiliar tanto no domínio da leitura quanto no do discurso escrito. Colomer (2007) apresenta ainda algumas atividades em relação à escrita de contos, constante no âmago de nossa proposta: atividades de geração de ideias, que incitam à fantasia, à originalidade, ao encadeamento extraordinário de uma história; atividades sobre a estrutura narrativa, que observam a estrutura típica dos contos maravilhosos; os modelos da literatura tradicional, que servem como protótipos para que as crianças possam desenvolver seus próprios textos; e o trabalho textual sobre a descrição, o diálogo e as formas de início e fim, que mostram as convenções formais do conto.
No que concerne ao leitor, especialmente no tocante ao texto literário, por que às vezes identificamo-nos de tal forma com uma “estória” que ela confunde-se com algo de nossa história?
Todos, ao lermos um texto, podemos fazê-lo de várias maneiras. Atribuímos a ele nossas concepções, vindas de nossas experiências, nossos valores ou oriundas de inserções do próprio texto. Essa subjetividade do leitor que envolve o ato de leitura/interpretação evidencia-se também neste excerto de Rouxel, onde ela afirma que o professor deve ensinar os alunos a
[...] aceitar o universo construído pela ficção através de seu sistema axiológico próprio, a observar os indícios que permitirão, em uma segunda leitura, “ressemiotizar o texto”, alcançar um enredo inédito e uma nova visão de mundo. Dito de outra forma, é preciso que os jovens leitores ultrapassem sua reações espontâneas nas quais se revela sua utilização do texto — seu hábito de sonhar com o mundo ficcional — para acessar outras possibilidades interpretativas. (2013,  p. 155)

O objetivo é levar os jovens à mudança do molde tradicional de leitura, encaminhando-os à valorização da subjetividade, da significação, da cumplicidade com o texto. Esses aspectos influenciam na maneira como eles construirão seus próprios enredos, mexendo com estruturas e prismas pré-estabelecidos, arraigados e, por vezes, preconceituosos.
Segundo Rojo (2012), o conceito de multiletramento aponta para dois tipos de multiplicidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica dos textos que nelas circulam.
Acerca da multiplicidade de linguagens, Rojo (2012) salienta que ela está presente nos textos diversos em circulação, sejam impressos ou audiovisuais. As imagens fazem os significados dos textos contemporâneos. É a multimodalidade. Essa multissemiose dos textos atuais pede multiletramentos. Como os textos são compostos de múltiplas linguagens (semioses), o leitor precisa adquirir habilidades de compreensão e produção de cada uma delas, para produzir significados. Isso são os multiletramentos. Para isso, são necessárias novas ferramentas, além das tradicionais manuais e impressas: áudio, vídeo, imagens, edição, diagramação. Esses novos letramentos requerem novas práticas de produção em diversas ferramentas e análise crítica do receptor textual, por conta do caráter híbrido e fronteiriço desses novos formatos de textos. 
Ainda segundo Rojo (2009), ao passo em que incentivamos os alunos ao uso de modalidades textuais verbais, sonoras e visuais em seus trabalhos, estamos os inserindo num novo tipo de letramento, diferente da tradição, com um novo foco e uma nova maneira de produção de sentidos: o letramento multissemiótico, crítico e transformador. Assim, o usuário funcional da prática multimodal de leitura literária é aquele possui competência técnica (saber fazer) nas ferramentas/textos/práticas letradas requeridas.

Linguagem audiovisual

Durante as etapas da nossa proposta de leitura e produção, há o contato animador com a linguagem audiovisual. Analisaremos adaptações da literatura para o cinema, como mecanismo instigador da criatividade e pluralidade de linguagens.
O processo de produção dos contos multimodais envolve também desenhos, sobreposição de imagens, construção de falas, sejam escritas ou orais (gravadas), e a criação de novos contos num programa de edição de vídeos chamado Windows Movie Maker. O aluno
pode filmar com celular, usar aplicativos para criar desenho e trabalhar fotos. A ideia é usar a tecnologia a serviço da leitura e da criatividade. Esse contato com o programa deve impulsionar a construção de novos sentidos para o texto. Essa recepção literária criativa e lúdica deve ser explorada como fonte de inspiração e motivação para o contato mais íntimo com a literatura em outros níveis e com outros gêneros.
Conhecer e compreender as imagens cinematográficas implica a possibilidade de reflexão crítica do mundo à nossa volta. É necessário, então, avaliar novas (ou velhas) práticas, presentes no “chão” da escola, para conseguir interpretar essa nova realidade e inserir as mensagens produzidas pelo cinema, vislumbrar a riqueza audiovisual na apreensão de temas em nossas aulas de língua materna.
A inclusão de novas formas construtivas do processo de ensino-aprendizagem é imprescindível para uma formação integral e coerente com a vivência cultural do homem moderno. O cinema torna-se uma proposta educativa interessante quando representa valores de crítica e mudança social. Considerado como produto cultural moderno, ele possui a vantagem de introduzir no cotidiano das escolas um instrumento de leitura consciente da realidade, pelo viés da análise semiológica, ou seja, o estudo das intenções comunicativas através de signos distintos do linguístico.
A história e a estrutura do cinema são fascinantes. Sua linguagem oferece incontáveis possibilidades de filmes, estilos e temas. Enquanto espaço favorável a uma compreensão crítica das formas culturais e dos processos de comunicação, nossas aulas de leitura literária devem proporcionar múltiplas capacidades de vinculação cultural, informacional e educacional por meio das imagens que circundam nossa realidade. Daí surge o desejo por estudar o cinema na prática pedagógica da intertextualidade com o texto escrito. Busca-se compreender qual a articulação existente entre a literatura e o cinema, com o registro de imagem e som configurando-se como processo de comunicação e cultura, mesclado com a linguagem verbal, considerando, óbvio, as especificidades de cada gênero.
Mais do que ampliar as possibilidades de discussão acerca de um determinado conteúdo, a linguagem audiovisual possibilita confrontar o imaginário de cada aluno com o que está traduzido na tela, da mesma forma que se torna possível confrontar a visão do autor, o que ele quis transmitir, com a visão de cada espectador diante das imagens exibidas, buscando encontrar novas possibilidades de ver, perceber e fazer a leitura do mundo fora do ambiente escolar. Por meio da linguagem audiovisual, podemos ampliar nossos horizontes de expectativas em relação ao texto escrito, dimensionar nossa capacidade de entender o contexto e instigar nossa criatividade. Assim, pensando em leitura comparada entre literatura e cinema, “o que interessa ao homem é seu próprio drama que, de certa maneira, já se encontra pronto na literatura; o cinema volta-se para essa arte em busca de fundamento às histórias que ele quer contar” (Campos, 2003, p. 43).
A discussão sobre a adaptação de textos literários para o cinema traz à tona aspectos específicos da linguagem cinematográfica e a fidelidade do filme com a obra literária. Comparar implica aproximar linguagens de naturezas diferentes para extrair relações de semelhanças e/ou dessemelhanças, ampliando o repertório cultural já adquirido. O texto literário possui como característica básica a linguagem verbal, seja escrita ou falada. Já o texto audiovisual contrapõe-se à linguagem verbal com sua linguagem imagética, visual. Porém, concomitantemente, esses signos — o linguístico e o semiótico — unem-se para produzir sentido ao leitor/expectador.
A relação entre cinema e literatura é complexa, mas caracterizam-se pela intertextualidade. É impossível esperar que haja no filme todos os elementos presentes na obra literária, dadas as peculiaridades de ambos. Quando um escritor cria seus personagens, enredos e cenários não está pensando no visual. O mesmo acontece quando os produtores pensam em suas obras: pensam primordialmente no impacto imagético. De acordo com Johnson, (2003, p. 42) a “insistência à fidelidade é um falso problema, porque ignora a dinâmica do campo de produção em que os meios estão inseridos”.
Segundo Thiel (2009, p. 46-47), o cinema encontra na literatura uma fonte de inspiração artística. Mantém com ela um diálogo e a renova. Ultrapassando os limites físicos do livro, ele recria as histórias, numa construção intertextual, redimensionando e metamorfoseando-as em imagens e sons, com uma linguagem própria: a fílmica. Quando assistimos a um filme, em alguns casos, esperamos ver na tela o mesmo texto. Mas há as diferenças de suporte textual entre as duas obras. O cinema privilegia a palavra integrada à imagem e ao som, privilegiando, muitas vezes, a imagem.
Por fim, consideremos o que Thiel (2009) ainda sugere

Quando nossos alunos assistem a um filme que dialoga com a literatura ou é baseado em uma obra literária, é importante que consideremos se o livro foi lido ou é conhecido dos alunos, mesmo que apenas por fragmentos. Nesse caso, uma leitura comparativa/contrastiva pode ser sugerida, mas de forma a observar as especificidades de linguagem (literária e fílmica) de cada obra. Se a obra for desconhecida, propomos que alguns elementos (como gênero, contexto de produção ou recepção, ambiente, personagens, temas, foco narrativo) sejam abordados para ampliar o horizonte de leitura fílmica dos alunos quando da projeção. Finalmente, ressaltamos que o aluno deve poder utilizar seu repertório fílmico e literário para realizar a análise do filme, pois, assim, desenvolverá um olhar singular, orientado (mas não limitado), de forma a tornar-se um leitor e espectador crítico. (2009, p. 48)

Método recepcional de leitura literária

Segundo Bordini & Aguiar (1988, p. 80), este método traz a preocupação com o ponto de vista do leitor, diferentemente da tradição. Defende a ideia do relativismo de interpretação: no ato de produção e recepção, as expectativas do autor são traduzidas no texto; o leitor transfere também suas expectativas ao texto. O texto é, pois, um espaço onde esses dois horizontes podem identificar-se ou estranhar-se.
Zilberman (1982, p. 103) corrobora com Bordini & Aguiar, ao estabelecer as convenções que constituem o horizonte de expectativas, pelas quais o autor concebe a obra e o leitor a interpreta: social, pois compomos uma hierarquia na sociedade; intelectual, porque nossa visão de mundo é compatível como nosso lugar no espectro social; ideológica, que representa os valores do nosso meio, que nos são intrínsecos; linguística, pois usamos certo padrão de expressão, decorrente de nossa educação e do padrão usado em nosso espaço social; literária, proveniente das nossas leituras, da oferta artística da tradição, das mídias e da escola; e afetiva, que causa a adesão ou a rejeição.
Objetivos do método recepcional, conforme Bordini & Aguiar (1988, p. 86-91):
·         Efetuar leituras compreensivas e críticas;
·         Ser receptivo a novos textos;
·         Questionar as leituras em relação a seu próprio horizonte cultural;
·         Transformar os próprios horizontes, bem como os do professor, escola, comunidade, família.

Etapas de desenvolvimento: técnicas
·               Determinação do horizonte de expectativas: etapa em que o professor investiga a bagagem de experiências linguísticas, sociais, de valores. Mobiliza-as a partir das lacunas do texto e dos interesses dos alunos;
·               Atendimento do horizonte de expectativas: etapa em que o leitor se identifica com a obra, que ela apresenta conceito, valores e ações que coincidem com as dele. É a confirmação do que ele tinha como vivência imaginativa;
·               Ruptura do horizonte de expectativas: acontece no distanciamento crítico do horizonte cultural do leitor em relação às novas propostas suscitadas na obra;
·               Questionamento do horizonte de expectativas: fase de revisão de usos, necessidades, ideias, comportamentos, a partir das inferências do texto;
·               Ampliação do horizonte de expectativas: momento em que há a assimilação, ou seja, a percepção e adoção de novos sentidos integrados ao universo vivencial do indivíduo.

Método semiológico
[...] Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro.  (Bakhtin, 1979, p. 99)

A semiologia, na perspectiva bakhtiniana, estuda a compreensão dos signos de qualquer espécie (não somente os verbais), com sua intencionalidade e ideologia. Centra-se na linguagem como função social, contemplando suas múltiplas realizações. Conforme Bordini & Aguiar (1988),
Uma proposta de ensino de literatura fundada no método semiológico tem por objetivo transformar a aprendizagem numa prática cotidiana de intercâmbio e coexistência de valores diferenciados, que elegem a linguagem literária ou outras linguagens como veículos de circulação. Compreende a sociedade como um conjunto de vozes, atitudes e ações, individualizadas e pessoalizadas, que sem embargo podem conviver mesmo na dissonância e nas contradições, alimentando-se justamente dos desvios. (p. 132)

Elas ainda afirmam que a atitude semiológica tenta explicar e interagir dialeticamente as relações entre cultura e sociedade, sem, precisamente, uma ser reflexo da outra. A metodologia semiológica deve considerar o signo ideológico, o dialogismo, a polifonia e a coleta de textos culturais diversificados, pois a leitura de um texto nunca é unânime, nem dentro nem fora da escola. As diferentes leituras de uma obra são possíveis porque ela é atemporal e interage com os diferentes momentos histórico-culturais. Uma compreensão semiológica requer o domínio da composição de diversos produtos culturais, desvendando a multiplicidade de vozes e captando o modo peculiar de combinação dos signos em cada manifestação artística, e seu efeito ideológico sobre nós.
Objetivos do método semiológico, conforme Bordini & Aguiar (1988, p. 133-142):
·         Admitir a diversidade de textos na vida social;
·         Adquirir as normas intencionais do jogo semiótico, posicionando-se criticamente frente a elas;
·           Perceber a realização diversa das regras pelos diferentes sujeitos produtores de signos;
·         Captar as intenções dos textos que transitam no meio social.
Etapas do método semiológico:
·         Coleta de textos culturais diversificados;
·         Aquisição das regras do jogo semiótico;
·         Reconhecimento do uso intencional das diferentes linguagens;
·           Análise das intenções conformadoras (inalteram comportamento/valores do leitor) ou emancipatórias (modificam comportamento/valores do leitor) dos textos;
·         Interação dos sujeitos com os textos.

Oficina de leitura literária multimodal

Objetivo: Realizar atividades de leitura literária de contos de fadas tradicionais, de suas adaptações audiovisuais e de recriação desses contos — utilizando conceitos dos métodos recepcional e semiológico — tendo como foco a formação de alunos leitores intertextuais e multimodais.
Material: Versão escrita do conto clássico “A gata borralheira” (nesta análise fora usada a tradução da Drª Clarissa Pinkola Estés; vide referências) e o filme “Cinderella” (2015).
Etapas:
1. Levar para os alunos o texto escrito do conto clássico. Distribuir o material e fazer as leituras. Analisar com eles o enredo e discutir oralmente sobre os seguintes aspectos: o papel dos personagens, os valores inseridos no conto, as expectativas em relação ao conto;
2. Apresentar aos alunos o corpus narrativo do conto de fadas (ver quadros abaixo), conforme Propp (2006), enfatizando as funções dos personagens e identificando na história cada sintagma estrutural;
3. Assistir ao filme Cinderela (2015).
4. Identificar também no filme os personagens e ações, conforme a morfologia de Propp (ver quadros abaixo). Promover uma roda para debater sobre alguns aspectos do texto: comparativo entre a descrição dos personagens do conto tradicional e a da adaptação; diferenças do papel das personagens; mudanças no enredo; ausência de personagens e inclusão de outros; as diferentes versões para uma mesma história; o tempo e o espaço narrativo;
5. Orientar e coordenar a produção de um conto multimodal. Será em um vídeo, em que se poderá usar imagem e voz. Este é o momento crucial. Nesse conto, eles podem ampliar e/ou modificar os padrões estabelecidos quanto aos personagens, tempo e espaço. Poderão alterar, conforme sua criatividade, as ações da estrutura dos contos tradicionais. Como proceder:
* Antecipadamente, o professor deve já conhecer e saber usar o programa Windows Movie Maker. Orientar os alunos sobre o manuseio do programa;
* Propor que eles recontem o conto em análise ou criem seus próprios contos, através de cenas produzidas em desenhos, pinturas ou imagens. As falas podem ser escritas em balõezinhos (como nas HQ) ou serão editadas em vozes no próprio Movie Maker;
6. Após isso, o professor revisará todas as produções. Após a leitura dos textos escritos (quando for o caso), fazer as observações pertinentes, no âmbito gramatical, para a reescrita pelos alunos. Ater-se a aspectos mais relevantes, como ortografia, pontuação, concordância, acentuação, etc. Tomar cuidado para não invadir o espaço criativo do aluno, interferindo nos rumos da narrativa, que é fruto das experiências dele;
7. Promover uma sessão, com a exibição dos vídeos produzidos, e organizar todas as produções numa antologia digital da classe.
Variação: O professor pode deixar a produção facultativa ou mista, entre texto escrito e texto audiovisual.

Análise estrutural, conforme Propp (2006), do conto A gata borralheira e do filme Cinderela

7 personagens básicos
(e suas esferas de atuação)

Conto
A gata borralheira
Filme
Cinderella
1.       O agressor/malfeitor (que faz mal ou causa dano, enfrenta e/ou persegue o herói)
A madrasta, as duas filhas, o pai
A madrasta, as duas filhas, o grão-duque
2.       O doador (submete o herói a provas; dá o objeto mágico ao herói)
A aveleira (que representa a alma de sua mãe)

A fada madrinha (velhinha)

3.       O auxiliar (que ajuda o herói no seu percurso/tarefa; salva o herói na perseguição, repara o dano, altera a aparência do herói, soluciona tarefas difíceis impostas ao herói... pode ser um ser vivo ou objeto mágico)
Um passarinho branco
A aveleira
Os pombos brancos
As rolinhas
Os ratinhos
Os lagartos
O ganso
A abóbora
Pássaro
O capitão da guarda real
4.       A princesa e/ou o pai (impõe ao herói tarefas difíceis; dá ao herói uma marca ou objeto que servirá para identificá-lo depois; desmarcara o falso herói; reconhece o herói, casa-se com o herói)
O príncipe
O príncipe
O rei (pai)
5.       O mandador/mandante (que envia o herói a sua missão)
A aveleira (que representa a alma de sua mãe)
A fada madrinha
6.       O herói (realiza uma busca ou é colocado à prova; casa-se com a princesa)
Borralheira (Cinderela)
Ella (Cinderella)
7.       O falso herói (parte em viagem para realizar busca; é colocado à prova pelo doador, mas falha; quer receber o prêmio pelo herói)
As duas filhas da madrasta
As duas filhas da madrasta

Ações/funções
(sintagmas narrativos)
Conto
A gata borralheira
Filme
Cinderella
1
Afastamento – um personagem sai do local/situação seguro(a)
A morte da mãe de Cinderela
A morte do pai de Ella
2
Interdição/proibição – herói recebe ordem de (não) fazer algo, um aviso, uma intimação
Cinderela é proibida de ir à festa no palácio
(culminância de várias privações/humilhações)
Ella é proibida de ir ao baile no palácio (culminância de várias privações/humilhações)
3
Transgressão – o personagem desobedece
Borralheira insiste em ir à festa no palácio
* Ella tenta fugir a cavalo pela floresta e conhece o príncipe, sem saber quem ele é (apaixonam-se);
*Ella pede para ir à festa no palácio

4
Interrogação – malfeitor pergunta sobre o herói, procura meios de o atacar

-

-
5
Informação – malfeitor recebe informações sobre o herói

-

-
6
Engano – O agressor tenta enganar a vítima
A madrasta diz que ela irá se catar, duas vezes, as lentilhas que jogou no borralho da lareira
A madrasta finge aceitar que Ella vá com o vestido da falecida mãe e o rasga

7
Cumplicidade – persuadido pelo agressor, inocentemente, o personagem se deixa enganar
Borralheira aceita as tarefas
Cinderella, por um momento, acredita na permissão
8
Dano/vilania – surge o problema, o núcleo da narrativa
A madrasta vai ao baile com suas duas filhas e deixa Borralheira
A madrasta vai ao baile com suas duas filhas e deixa Cinderella
9
Mediação – o herói surge para corrigir o dano
Borralheira decide tentar ir à festa
-
10
Início da reação – o herói aceita ir contra o malfeitor
Borralheira vai ao túmulo da mãe
-
11
Partida – O herói sai para cumprir a missão
Borralheira pede ajuda à aveleira
-
12
Transmissão de objeto mágico – o doador ajuda o herói.
A aveleira envia o pássaro
-
13
Prova – doador submete herói a uma prova para ajudá-lo
-
A fada (velhinha), fingindo estar com fome, prova a generosidade de Ella, já conformada em não ir
14
Reação – herói supera a prova e recebe a ajuda do doador
-
Ella ajuda a velhinha (fada)
15
Recepção do objeto mágico – é o prêmio da prova; pode ser também uma informação, conselho, etc.
O pássaro veste Borralheira com um vestido dourado e sapatinhos de prata

A fada veste Cinderella e faz com que ela vá linda ao baile
16
Deslocamento – viagem ao local do conflito
Borralheira vai à festa
Ella vai ao baile
17
Marca – herói recebe uma marca no corpo ou objeto identificador (lenço, anel, etc.)
A roupa de Borralheira não permitiu sua identificação (sapato)
A fada fez com que Ella não fosse identificada (feitiço mágico) – sapato
18
Vitória – Malfeitor é derrotado, expulso ou morto
O príncipe dançou a festa inteira com Borralheira
O príncipe dançou com Ella e foram conversar no jardim
19
Reparação – o dano é corrigido (quebra de feitiço, soltura de prisão, fim de alguma privação, etc.)
Borralheira conseguiu ir à festa (três dias)
Ella conseguiu ir ao baile e reencontrar o misterioso cavaleiro da floresta (príncipe)
20
Regresso – o herói volta para casa
Borralheira volta para casa
À meia-noite, Ella fugiu, pois o feitiço se desfaria
21
Perseguição – herói é perseguido   (transformação em animais, tentativa de morte, etc.)
 Borralheira é seguida pelo príncipe
Ella é seguida pelos cavaleiros da corte
22
Salvamento – o herói se salva ou é salvo por outrem
Borralheira se salva (em duas noites) escondendo-se no pombal e na pereira do seu quintal

Ella consegue chegar a sua casa sem ser alcançada
23
Chegada incógnita – herói aparece disfarçado ou não se identifica
Nas três noites, Borralheira chega despercebida
Agressoras de Cinderella não percebem que ela fora ao baile (madrasta descobre o sapatinho escondido)
24
Falsas pretensões – falso herói se faz passar pelo herói
Na terceira noite, o príncipe manda cobrir a escadaria de cola e fica um sapatinho lá. Ele vai à casa de Borralheira. Os agressores tentam enganá-lo.
O príncipe ordena uma busca para descobrir quem é a dona do sapatinho. No fim, O conselheiro e a madrasta tentam escondê-la e enganá-lo.
25
Tarefa difícil – herói precisa cumprir prova para mostrar quem realmente é
O príncipe ordena que as moças calcem o sapatinho
O príncipe ordena que as moças calcem o sapatinho
26
Realização da tarefa – o herói supera a prova
Borralheira prova ser quem o príncipe buscava
Ella prova ser quem o príncipe buscava
27
Reconhecimento – herói é identificado (pode ser pela marca deixada pelo agressor)
Induzido pelos pombos, o príncipe reconhece Cinderela como a verdadeira dona do sapato
O príncipe encontra Ella, que estava presa no sótão. Ella calça o sapatinho
28
Desmascaramento – o falso herói é desmascarado
Os pombos avisam o príncipe sobre a farsa (duas vezes); o sapato cabe perfeitamente no pé de Cinderela
Ella recebe uma ajuda do pássaro (auxiliar), que abre a janela do sótão para que o chefe da guarda a ouça cantar e descubram a farsa
29
Transfiguração – herói é encoberto por uma aura que o muda fisicamente (ganha nova aparência, novas roupas, etc.)
Os dois pombos pousam nos ombros de Cinderela
* Não Ella, mas o príncipe revela seu disfarce de soldado, para fiscalizar a lealdade do conselheiro
30
Punição/castigo – O agressor, seus ajudantes e/ou falso herói são punidos
Os pombos furam os dois olhos das duas irmãs postiças de Cinderela
Embora Ella perdoe a madrasta, ela fica pobre com suas filhas e o Conselheiro
31
Recompensa – herói é recompensado, geralmente com personagem envolvida no dano (casamento, subida ao trono, enriquecimento, etc.)

Cinderela casa-se com o príncipe

Cinderela casa-se com o príncipe

Observações importantes

* Poderá haver variações nos personagens, quanto à questão de gênero, como é o caso do conto analisado;
* A ordem da sequência pode, por vezes, ser alterada dentro da história. Por exemplo: no conto analisado, as ações 27 e 28 acontecem antes da 26;
* Normalmente, quem persegue o herói é o agressor, para fazer mal. Nesse caso, ela é perseguida pelo príncipe (doador), para conhecê-la;
* Uma sequência (ações/funções) pode vir uma após outra ou entrelaçadas; (Propp, 2006, p. 90)
* Um personagem pode ocupar uma esfera de ação, várias esferas ou vários personagens alternam-se em uma esfera de ação; (Propp, 2006, p. 78-79, p. 81)
* Os personagens são definidos por sua contribuição ao enredo o seu impacto sobre o herói;
(Propp, 2006, p. 79
* Essencial perceber a possibilidade de alterações entre versões do conto e entre conto e filme, para que o aluno se sinta à vontade e instigado a “mexer” com a estrutura no seu reconto.


Referências bibliográficas

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* Mestre em Letras (UFS)
prof.wellinghton@yahoo.com.br


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